UENF: O que houve com o Paraíba?


Velho amigo dos campistas e fluminenses, o rio Paraíba do Sul esteve irreconhecível em 2014. O recorde negativo do seu nível foi quebrado dia após dia, marcando a cota de apenas 4,43 metros (acima do nível do mar) em 23/10/14 — quando o normal seria 5,80. De tão esquálido, o Paraíba permitiu ser atravessado a pé de uma margem a outra pelo diretor do Comitê de Bacia Hidrográfica do Baixo Paraíba do Sul, João Gomes de Siqueira, membro do corpo técnico da UENF. Ele fez a travessia no dia 28/09/14, em um ponto distante cerca de 25 quilômetros do Centro de Campos, rio abaixo, e na maior parte do percurso a água atingiu altura máxima em torno de 45 centímetros, ou seja, mal molhou os joelhos do João. Apenas em alguns poucos metros, onde o rio se apresentou como um pequeno canal com correnteza, a água atingiu a cintura. Mas isto não significa que o rio tenha estado raso em todos os pontos. Em 24/10/14, por exemplo, o menino Felipe Oliveira, de 13 anos, morreu afogado na região do Parque Prazeres, em Campos (RJ), e teve seu corpo encontrado a cerca de sete metros de profundidade.
Desde que começou a ter seu nível monitorado, em 1922, o Paraíba nunca apresentou tão pouco volume por tão prolongado período. Mas a redução drástica na vazão, acentuada pela severa estiagem que atingiu o Sudeste do país, também se explica pela sangria que sofre ao longo de seu curso. O ponto crítico se encontra na barragem de Santa Cecília, em Barra do Piraí (RJ), onde ocorre a transposição de grande parte de suas águas para o rio Guandu. Houve tempo em que a vazão mínima na altura da barragem era de 250 m3/s, com 160 m3/s transferidos para o Guandu e 90 m3/s mantidos no Paraíba do Sul. Antes da crise, uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA) estabelecia que, em condições adversas extremas, essa vazão mínima poderia ser reduzida para 190 m3/s, sendo destinados 119 m3/s para o Guandu (transposição) e 71 m3/s para o Baixo Paraíba, como explica João Gomes de Siqueira. Por conta da estiagem de 2014, a ANA autorizou a redução da vazão na barragem de 190 m3/s para 160 m3/s. Este volume, já reduzido, é distribuído na base de 68% para o Guandu (109 m3/s) e 32% para o restante do próprio Paraíba (51 m3/s). Outros 20 m3/s são transpostos do Rio Piraí, afluente do Paraíba, também para abastecer parte da região metropolitana.

Além do desvio para o Guandu, o Paraíba do Sul é sangrado em até 26 m3/s para a irrigação de lavouras, segundo diagnóstico publicado em setembro de 2014 pela consultoria COHIDRO por solicitação da Agevap (Associação Pró-Gestão das Águas da Bacia Hidrográfica do Paraíba do Sul). Outros 16 m3/s são usados para abastecimento urbano no resto da bacia (ou seja, sem computar o Grande Rio) e 4 m3/s são destinados à pecuária, conforme artigo acadêmico de 2009 de autoria de Karla Aguiar Kury e diversos colaboradores. À época do estudo, Karla era mestranda do Instituto Federal Fluminense (IFF), sob orientação do professor Carlos Eduardo de Rezende, do Laboratório de Ciências Ambientais (LCA) da UENF. Tudo somado, a conta da sangria chegaria a 175 m3/s. Isto significa mais do que toda a vazão do Paraíba em Campos (RJ) em períodos agudos de estiagem. Nesta crise de 2014, por exemplo, a vazão mínima medida pelo LCA/UENF foi de 130 m3/s no dia 02/10/14. Como indicam estudos da pesquisadora Marina Suzuki, do LCA/UENF, a vazão média em Campos fora da estação chuvosa é de 450 m3/s. Ao longo de um ano inteiro, a variação pode ser muito grande: por exemplo, no ano de 2011 variou de 260 a 4.500 m3/s, perfazendo média geral de 1.070 m3/s.

Para o historiador ambiental Arthur Soffiati, dois rios Paraíba do Sul estão progressivamente se consolidando: um da nascente até a Baía de Sepetiba, tomando o Guandu e o Canal de São Francisco como trecho final, e outro da nascente do Rio Paraibuna de Minas até a foz em Atafona. Ambos são ligados por um trecho de 101 quilômetros, que mais parece um córrego, entre a barragem de Santa Cecília e a cidade de Três Rios (RJ), onde o Paraíba recebe o reforço do afluente Paraibuna, que desce de Minas Gerais.

Reflexos na zona costeira
Segundo o professor Carlos Eduardo de Rezende, um dos possíveis impactos com a redução da vazão está diretamente ligado aos manguezais que ocorrem na região estuarina. Para o pesquisador, é preciso promover o monitoramento contínuo deste importante ecossistema na interface continente oceano, pois ele fornecehabitat e alimento para várias espécies de invertebrados e vertebrados marinhos de grande importância econômica para a região.

Com a redução da vazão, avalia, ocorrem duas possibilidades: (1) o ecossistema de manguezal poderá sofrer mais as ações dos agentes físicos e a mudança no transporte de sedimentos de origem marinha, apresentando, portanto, mortalidade da faixa externa do ecossistema; (2) poderá ocorrer uma migração do ecossistema de manguezal para regiões superiores do estuário, pois haverá uma maior penetração da cunha salina. Ainda em relação à redução da vazão, prossegue o pesquisador, toda a região costeira adjacente ao estuário do rio Paraíba do Sul sofrerá novas alterações até que se encontre um novo equilíbrio dinâmico no transporte de material de origem continental e marinha. Em outras palavras, podem-se prever novos fenômenos de avanço do mar sobre a costa.

Este avanço da água salgada sobre o curso do rio tornou-se realidade em São João da Barra (RJ), onde a captação de água por parte da Cedae (Companhia Estadual de Água e Esgoto), nos períodos mais críticos, era interrompida toda vez que a maré subia até o nível de 1,20 m. No início de novembro, a Cedae chegou a ficar de meia noite às 9h da manhã sem captar uma gota d’água. Por conta disto, a captação em São João da Barra está para ser deslocada oito quilômetros rio acima, para a altura do distrito de Barcelos. Enquanto isso, foi proposta uma intervenção para facilitar o fluxo da água doce rumo ao oceano em um braço do rio próximo à margem direita, com o intuito de dificultar a penetração de água salgada em direção a São João da Barra. No período mais agudo desta estiagem, a cunha salina chegou a avançar pelo menos 5,5 quilômetros rio adentro.

Acordo pela transposição gera temores

O entendimento dos governadores de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro quanto à proposta de transposição do rio Jaguari, afluente do Paraíba, para o sistema Cantareira, firmado em 27/11/14, trouxe imensa preocupação à população do Norte Fluminense. Em meio à baixa no nível e ao avanço da cunha salina na região da foz, quer-se evitar que a região seja novamente a “área de sacrifício”, como cunhou a pesquisadora Marina Suzuki (LCA/UENF).
Pelo acordo preliminar firmado no Supremo Tribunal Federal pelos governadores Geraldo Alckmin (SP), Luiz Fernando Pezão (RJ) e Alberto Pinto Coelho (MG), o governo paulista pode começar o processo de contratação das obras para a transposição do rio Jaguari. Os três estados devem apresentar ao Supremo até 28/02/15 plano conjunto de uso da água. Por ora, o que os governadores e seus auxiliares dizem é que fluminenses e mineiros não teriam reduzida a quantidade de água.

— Apesar de insistirem que são somente 5 m3/s de transposição, esta deve ser estudada com cuidado. O abastecimento humano é prioritário, mas se deve levar em consideração que a vazão no Baixo Paraíba do Sul tem que ser suficiente para abastecer “somente” cerca de 900 mil habitantes. Também os serviços ecossistêmicos devem ser mantidos e levados em consideração – opina a bióloga Marina Suzuki, do LCA/UENF.

Para o professor Carlos Eduardo de Rezende (LCA/UENF), um aspecto importante está sendo desconsiderado em toda a discussão: o comprometimento do equilíbrio da região costeira em vista da redução no transporte de sedimentos e água até a foz. O problema está relacionado não apenas à transposição, mas também às 100 novas barragens previstas para serem construídas na calha principal do Paraíba ou de seus afluentes, como consta do “Plano de Ação Nacional para a Conservação das Espécies Aquáticas ameaçadas de Extinção na Bacia do Rio Paraíba do Sul”, publicado em 2011 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Ministério do Meio Ambiente.

— Como resultado, teremos agravamento dos riscos de desaparecimento das espécies migratórias devido às barragens, pois várias destas espécies dependem do ciclo hidrológico de baixa e alta vazão. Além destes aspectos, devemos considerar a possibilidade de desaparecimento de lagoas marginais que servem como berçários para várias destas espécies — alerta o pesquisador.

Esgoto doméstico ainda é o grande vilão

Embora a seca tenha trazido ares de dramaticidade, o calvário do Paraíba do Sul vai muito além da aguda escassez de água em seu leito. O desmatamento de áreas ribeirinhas é considerado o maior responsável pelo processo de assoreamento, que faz surgir bancos de areia ao longo do rio.

Em termos de poluição, a maior fonte não são as indústrias, mas sim o esgoto doméstico e os resíduos sólidos (lixo) produzidos pelas cidades situadas ao longo do seu curso. Diariamente, cerca de 600 milhões de litros de esgoto sem tratamento são lançados nos rios que compõem a bacia, excetuando a bacia do Guandu. A estimativa, feita pela COPPE/UFRJ a pedido do jornal O Globo, foi publicada pelo diário carioca em 12/11/14.

Em tempos de baixa vazão, a combinação entre a manutenção da carga de nutrientes de origem dos esgotos, a baixa concentração de material particulado em suspensão e a maior penetração de luz na água gera as condições ideais para a proliferação de determinados grupos de microalgas, entre elas as cianobactérias. A proliferação de cianobactéria pode se tornar uma séria questão de saúde pública nos corpos d’água utilizados para o abastecimento geral, uma vez que estas são potenciais produtoras de fitotoxinas. A produção de compostos tóxicos por cianobactérias já ocasionou, em outubro de 2002, o desabastecimento por três dias em Campos (RJ), quando populações de Anabaena circinalis produziram geosmina, uma substância organoléptica que confere odor e sabor de “pó-de-broca” à água e provoca irritações cutâneas e diarreia. Nos últimos dias da estação seca, populações de outra cianobactéria, do gêneroCylindrospermopsis, também potencial produtor de toxina, foram observadas em elevada densidade nas águas do rio Paraíba em Campos.

— Este ano tivemos inclusive um fenômeno que são formações de grandes bancos de algas coloniais e filamentosas no fundo do rio, formando tapetes visíveis, o que jamais ocorreria em condições normais — avalia Carlos Rezende. A professora Marina Suzuki coletou amostras deste material biológico e identificou os seguintes táxons: Spirogyra cf longata e Hydrodictyon reticulatum. Além das algas, podem ainda ser observados bancos de macrófitas aquáticas submersas, das espécies Ceratophyllum demersum e Egeria densa. Segundo os pesquisadores, estes tipos de ocorrência são raros em ambientes fluviais e só aparecem devido às condições excepcionais em que se encontra o Paraíba do Sul.

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Para completar, o Paraíba do Sul vem sendo periodicamente vitimado por grandes sinistros ambientais, como recorda Carlos Rezende. Em 1989 o derramamento de metanol em Barra do Piraí (RJ) resultou na suspensão do abastecimento d’água nos municípios banhados pelo Paraíba do Sul, provocando uma corrida para abertura de poços domiciliares. Em 2003, o Paraíba ficou negro com o rompimento de um reservatório da Indústria Cataguazes de Papel, em Cataguases, Zona da Mata mineira, que causou o vazamento de mais de 20 milhões de litros de soda cáustica, provocando uma diminuição drástica dos teores de oxigênio dissolvido e um aumento das concentrações de carbono orgânico dissolvido e condutividade. Como resultado, houve grande mortandade de peixes e crustáceos, provocando uma esterilização da vida no rio durante um período. Naquela ocasião, o abastecimento ficou comprometido por cerca de oito dias. Em 2006, novo derrame, desta vez devido ao rompimento de uma barragem de rejeito de bauxita: a lama originária do minério atinge o Rio Paraíba do Sul, e o vazamento dura três dias. O rompimento da barragem arrastou 400 mil metros cúbicos (400 milhões de litros) de lama provenientes do tratamento de bauxita, sendo que o volume do reservatório era de 3,6 milhões de metros cúbicos. Em 2007, pelo menos 2 milhões de metros cúbicos de lama misturada com bauxita e sulfato de alumínio vazaram novamente da mesma indústria. Em 2008, houve derrame do inseticida Endosulfam, mas o volume é incerto, variando de 1,5 mil a 30 mil litros, e, mais uma vez, observou-se mortalidade de peixes devido às características toxicológicas do composto.

A escassez de água provocada pela estiagem no Sudeste mostra que as preocupações com a preservação dos mananciais e com o uso racional dos recursos já não pode ser exclusividade dos ambientalistas, mas precisa entrar na pauta não apenas dos governos, mas também de todo cidadão. No caso específico do Paraíba, é preciso que todos contribuam para sua preservação e minimizem o desperdício de água no seu cotidiano.


Diretoria de Informação e Comunicação (DIC) / Gerência de Comunicação (ASCOM)
Fotos aéreas: Paulo Damasceno – cedidas pelo Laboratório de Ciências Ambientais (LCA/UENF)

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